Quando eu era criança e adolescente, tinha uma tia-avó que morava nas Laranjeiras, perto do Largo do Machado. Ali era o centro do Rio de Janeiro para mim, onde ele começava. Íamos eu, meus pais, meu irmão mais novo e nossa outra tia-avó. Essa pontinha completava o desenho de família que eu tinha na cabeça na época.
Aos meus olhos de pequena, era uma aventura ir lá! Tudo começava na Paróquia Matriz de Nossa Senhora da Glória e se espalhava ao redor: o McDonald’s, a lanchonete com pastelão, o Palácio do Catete… Minha tia sempre dizia que Getúlio Vargas havia morado ali. Entretanto, aos sete, oito anos, o ex-presidente não era ninguém para mim: o incrível mesmo era a areia empetecando as mãos e os brinquedos!
No Parque Guinle, as suas longas subidas rodeadas de verde vivo e o lago com patinhos faziam minha mente infantil. A casa de minha tia, pintada dos móveis de madeira, exclamava sua engenhosidade. Visitei-a mais na pré-adolescência quando dormia lá com ela e a outra tia-avó, sempre fazendo os mesmos passeios.
Adolescente, fiz um amigo que tenho até hoje que morava na região. Justo ele, dentre todos do Rio, ficou mais próximo de mim. Apelidei-o de moço filósofo. Foi o nome mais elaborado que já dei a alguém. Nessas visitas à minha tia, encontrei-o para que me ensinasse a andar de bicicleta. Ele tentou o quanto pôde no Aterro do Flamengo, mas eu já não tinha mais a mesma facilidade de antes.
Amadureci em algum nível aos dezoito, dezenove anos. Nessa idade, experimentei novos entendimentos e relações. A faculdade parecia o capítulo seguinte ao Ensino Médio. E eu realmente não esperava que ela fosse terminar tão diferente de como começou…
Nesse meio tempo, conheci o que era se apaixonar. Eu não sabia que toda jovem moça sentia isso um dia… E foi maravilhoso e devastador ao mesmo tempo! As cores ganharam vida, os passarinhos cantaram e a minha cabeça ganhava um crescimento e consciência…
Contudo, em 2020, que era para ser a continuação dessa crônica, o mundo ficou de quarentena pela pandemia do coronavírus. O que era certeza se tornou dúvida e a minha alma se transformou: meu olhar mudou, ficou mais tenebroso e o céu era tomado de um vermelho porque nada mais era bom.
Nessas incertezas que surgiam, a tia-avó de Niterói morreu. Era abril de 2020. Ela morava com a gente e isso tirou uma pecinha do meu quebra-cabeça. Como assim ela havia morrido? Ela sempre esteve nesse mundo! Foi aí que eu comecei a perceber que as coisas estavam mudando: eu estava crescendo… A criança que eu havia sido estava muito mais distante do que a adulta que eu me tornaria. E a estrutura da vida já não era mais tão permanente…
No ano seguinte, sua irmã que morava no Rio faleceu também. Era julho de 2021, véspera do aniversário do meu melhor amigo do Ensino Médio. Ele foi morar na Argentina e não estamos nos falando. Eu não sei como retomar o contato porque tudo ficou esquisito. Não sei como superar isso e assegurá-lo de que ele significa muito para mim mesmo que eu pire às vezes… Vez ou outra penso que a Bárbara da escola não me entenderia. Ou talvez fosse a que mais o faria se deixasse cair os seus véus…
Encontramos a família para o enterro dela. Como ela havia ido também? Estava acostumada que minha avó fosse a que faltasse, não as três! Quando a vi ser enterrada, entendi que a geração delas havia acabado nessa terra. E agora a minha subia de nível. Isso é algo grande demais para mim… Eu ainda quero me proteger entre os casacos dos meus velhinhos…
Esse episódio tem mais de um ano já. Muita coisa aconteceu desde então. Eu vi, por exemplo, a igualmente imortal Rainha Elizabeth II falecer. O que está acontecendo com o mundo…?! Todos estão morrendo e meu corpo tem mais curvas e não é mais pequenino…
Hoje, quando pego o ônibus pro Largo do Machado, não preciso mais ser acompanhada. Ninguém precisa me dar a mão. E quem me recebe não é mais a família na qual me engendrei, mas um amigo que fiz quando saí no mundo e construí minha vida. Eu não tinha ideia de que estava fazendo isso… Não sabia que estava escolhendo as pessoas que definiriam quem eu sou. Elas pareciam apenas… meus amigos…
Ninguém me fez entender esses eventos e nomes… Ninguém me mostrou de fato que, um dia, pessoas não existiriam mais aqui e que eu traçaria meu próprio caminho. Ninguém me disse que eu mesma pagaria pelo meu pastelão e pelo meu sorvete com o meu próprio cartão. Ninguém me contou que, um dia, eu viveria sem pedir permissão.
Ninguém me perguntou se eu queria crescer. Isso era algo misterioso, envolvido de uma áurea que só se descobriria com o tempo, e hoje parece isso e um pouco mais, porque eu tô me deixando para trás: a cada dia que passa, eu me torno mais eu aqui dentro, sem que necessariamente o exterior veja. Acho que é isso o que significa ser adulto: você não precisa que os outros gostem de você. E, no entanto, ainda precisa, porque quer um emprego e dinheiro.
Ninguém perguntou se eu queria ir para o Largo do Machado sozinha. Ninguém perguntou se eu iria querer enterrar as duas senhoras para quem eu contava sonhos infantis e sinopses de filmes da Barbie. Por que elas tinham que partir e eu continuar aqui…? Por que não me avisaram que as nossas seguranças ruem…? Tudo parecia eterno quando eu era criança…
Agora, não ouço mais a risada característica de minha tia nem sinto sua energia vibrante. Posso até entrar no seu antigo apartamento, mas estará vazio. Ela não vai estar me esperando com goiabada e queijo na mesa nem reclamará do meu cabelo molhado: o que reinará é o seu silêncio e a minha esperança de que elas ainda pensem em mim…
Algumas casas deixaram e deixarão de me receber com o tempo… Em contrapartida, outras abrirão suas portas com todo prazer. Eu quero poetizar o passado e a nostalgia dentro de mim. Quero me apegar ao que conheço porque o futuro é muito fosco. E não sei se um dia deixará de ser…
Aquela praça viu minha vida inteira e a de outros também! Viu minha mãe ser uma garotinha e agora ela é quase avó. Atualmente, o Largo do Machado ganhou novas dimensões: seus tons brancos se tornaram azuis. Viraram as ervilhas-de-cheiro azuis que são. Que somos.
Eu não sabia o quão sortuda era por ser menina… Hoje, vejo que o mistério da vida é ser seu próprio dono. Ninguém me ensinou isso. Ao contrário, atrás das cortinas, se esconderam as expectativas que eu vi se partirem. Quando a aflição era a pedra de jade que meu irmão perdeu no restaurante da rua das Laranjeiras, tudo era mais fácil. Agora, eu tenho que ser minha própria adulta e eu não tô pronta pra isso… Eu não tô pronta pra andar no Largo do Machado sem minhas tias-avós segurando minha mão…
Outubro/2022
Eu espero que elas tenham conseguido sentir essa crônica onde estão hoje... Também te amo, mãe! 💙
Este relato fez minha alma chorar de emoção e saudade! Como é bom recordar aqueles tempos ao lado de nossas queridas e relembrar momentos tão felizes. É um lembrete para que sintamos cada momento como algo especial porque, um dia, eles também deixarão saudades... te amo, filha!