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Espírito de Pedro

Eu tentei ser uma boa menina… Tentei ser o que esperavam de mim; a doçura cor-de-rosa de um vestido à beira-mar, que sempre tinha algo bonito para dizer e que refletia a luz do Sol num sorriso de uma felicidade inacabável! Eu queria ser a garota boazinha e feminina que nunca daria trabalho, mas que, ao contrário, seria exatamente a mulher que a família esperava e que não se deixou levar pelas modernidades…!

Em vez disso, as minhas ondas são tenebrosas e quebram fortes na Pedra de Itapuca, molhando os transeuntes na orla da Avenida Jornalista Alberto Francisco Torres que nada têm a ver com os meus problemas: são apenas vítimas de um humor desnecessário, que cria casos e mais casos e não se contenta com o espaço de seu próprio corpo, jorrando uma fúria que destrói tudo e depois se arrepende, implorando: “Por favor, por favor, não me abandona…!”!

Eu me lembro de um dia na Rua Gavião Peixoto, mais ou menos ali na altura das Lojas Americanas, em meio àquela paisagem branca de dia nublado, quando notei como o simples andar é um desfile para mim… Me manter em pé é muito custoso por causa desses tijolos emocionais que pesam meu coração… Eles me contorcem querendo quebrar por quão perturbado é aqui dentro… É tão intenso que me despedaça e faz jogar coisas, bater, gritar, brigar, espernear, chorar, esconder, temer, odiar, ignorar as pessoas, recusar o amor, cair, me machucar, acalmar e perder as forças ouvindo minha mãe dizer: “Minha filha, minha filha, você sofre tanto à toa…!”!

É por esse motivo que sei que as pessoas não gostam realmente de mim: elas gostam de quem eu finjo ser para atender suas expectativas: eu leio seus estilos, gostos, gestos, olhares aparentemente discretos, fios de cabelo soltos, linhas invisíveis em torno do corpo e decido qual parte minha eliminar e qual aumentar para me tornar quem eles mais querem ver…

Isso me fez criar tantas Bárbaras que não sei mais qual eu sou… Seria a simpática que me expande até se tornar legal e confiante…? A certinha que se manifesta quando eu desço um nível e me sufoco para seguir as regras e ser considerada digna…? Talvez a rancorosa que se apodrece por dentro e que sustenta essa energia por acreditar, fielmente, que todos a odeiam… Quem sabe a ingênua que tira pedaços de si para agir como uma criança, pois não sabe quem a amará se ela se assumir sua… Um dia, apenas uma vez, eu gostaria de andar pelas ruas de Icaraí sentindo que a vida começa, de fato, em mim…

Eu não sei… É tudo tão confuso aqui que parece que, não importa o quanto eu tente, sempre me encontro em uma dualidade: letras e educação, clássico e popular, frio e calor, introvertida e extrovertida, direita e esquerda, ansiedade e depressão, sagrado e profano, hetero e LGBT, rosa e azul que se completam em um roxo perfeito! Eu não sou uma estrada ou um destino: sou aquilo que quase chega lá…

Ainda assim, sinto uma maior verdade quando me concentro no meio de mim e me esforço para que minha identidade e minhas decisões não saíam dele… Ajuda, mas não impede que eu penda para o que a situação quiser… É tão difícil me segurar nesse eixo que eu deixo os outros fecharem os buracos que abri em meu peito quando pensei que podia ser só um pouquinho real… Eu sou tão acostumada a ser o que eles querem que já nem noto mais a distância com que ela me olha lá de baixo… Se eu realmente fosse boa o suficiente sozinha, não tinha tanta gente querendo me melhorar!

Todos os dias, quando acordo, minha personalidade está dilatada de mim e eu tento descobrir quem sou fora desse conceito que consegui definir… Eventualmente, no entanto, preciso colá-la de volta para ser o ser humano que esperam… Eu não devia precisar me mascarar, porém ninguém quer conviver com um fundo tão confuso que se desfaz em uma realidade que dizem só existir na minha mente! Eu não queria ter que fazer isso, mas precisava de amigos também…

Se eu fosse mais sincera, descobriria que meu maior sonho é viver… E, se me admitisse um medo, com certeza, seria o de sentir: não há coisa que eu temo mais do que sair desse sentimento em que me estagnei! Por ele, diariamente, despendo uma quantidade enorme de energia unicamente para não deslizar e me perder… E, a cada noite, ainda sou uma personagem por construir…

Minha mãe diz que eu preciso simplesmente viver, mas eu não consigo fazer isso! Como posso apenas confiar nos outros e ser feliz…?! Confiar é encontrar alguém em uma parte sua e isso nunca vai ser normal pra mim… Nenhum caminhar meu jamais poderá ser trivial… Afinal, se o meu maior medo não fosse eu mesma, não poderia ser considerada uma escritora!


Novembro/2024

2 Comments


Eu amei este texto... está forte, denso e complexo como você.

Filha, não importa como se sinta; não importa como se expresse. Seja você porque te amamos exatamente assim. Siga livre com seu Espírito de Pedro, minha Flor azul. 🩵

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Flor azul
Flor azul
Jul 03
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É justamente ele que me faz me perder nesses vãos de um possível amor incondicional...! Eu preciso acreditar mais...

Te amo, mãe!! 💙💙💙

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